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Monday 15 August 2011

DIÁLOGO COM UMA ÁGUIA

Diálogo com uma águia

Fui jantar hontem ao palácio. Estava lindo! Felizmente ninguêm. Tudo deserto. Quando eu desci do restaurante, a accender um Laferme com preguiça, caía a tarde de outono em vitrais ricos p'ralêm das ramarias a despir-se. Passeei algum tempo na avenida, e sem saber porquê, indo ao acaso, fui estacar nesse recanto triste onde mora engaiolada uma águia velha. Há que tempos conheço êste mostrengo, num abandono de asilo, de ar pedinte, com asas que diríeis paralíticas, de um tom coçado e neutro de miséria!... Uma águia isto, êste espantalho! A decadência reles de estas asas que tanta

{12} vez olhei com indiferença, nem eu sei bem porquê, impressionou-me. Um animal de fábula, de mito, um ser que bebeu sol de olhos abertos, curvava as garras frouxas num poleiro, e depois de carnagens e aventuras, encolhido, misérrimo, com fome, acabava a aspirar a um meio-bife, como um vadio à porta de um café. Coitada! Teve uma forma assim aquela águia que saboreou Prometeu numa montanha!
gaiola está sórdida, está imunda. Antes estivesse empalhada num museu, ou no quarto de trabalho de um zoólogo, sócio da Academia, homem de estudo, que ao voltar da rua ou da glória, lhe pendurasse do bico o chapéu alto. Coitada! Coitada! E notei com um calafrio, que pronunciara alto êste «coitada», com uma voz que a mim mesmo surpreendeu pela inflexão perturbante de quinto acto. Olhei a águia. Vi-a encolher-se tôda, contrair-se, enclavinhar as garras no poleiro, como a uma dor aguda que a varasse. Encarou-me por fim, olhou-me todo, fazendo-me corar dos pés ao côco,{13} e com uma voz que não era a voz da fábula, sem nada de lendário, sem estranho, com uma voz normal de velha beata, arrastada e roufenha, quasi gaga, cacarejou num tom de dor e mofa:
—Ao que eu cheguei! Ao que eu cheguei! Já tem pena de mim isso aí fora... Antes estar morta e podre, antes estar podre...
Estarreci. Não era o impossível realizado dessa carcassa de águia a falar alto, a falar como eu, que me empedrava: nem sequer o estranhei naquele instante; mas o dolorosíssimo desprêzo com que ela me chamou isso aí fora, com que ella ouviu que um isso a lamentava. Deitei fora o cigarro bruscamente, compus um momo frio de desdêm escondendo a irritação que me excitava, e premindo a bengala contra o queixo, retorqui-lhe benévolo e grosseiro:
—Não percebo o seu desprêso, não me atinge. Eu não disse «coitada» p'rá ofender. É sempre triste ver uma águia presa, mas numa gaiola, assim, é lamentável. P'ra mais,{14} conforme vejo no letreiro, foi um comendador que a ofereceu... E a gaiola...
—Que tem? Falta de estilo?
—Está cheia de excrementos. Está indecente.
—Já não diria isso se os visse cair de alto, no deserto, sôbre o granito cariado duma esfinge... Scenários, digo-lho eu, literatura...
Eu então requintei de pedantismo, e perguntei-lhe a rir de que alta estirpe, de que águias reais, de que família, ela veio a cair neste poleiro onde agora a ouvia perorar num claro entardecer de intimidade, com idilios de guardas e criadas, raros bebés jogando às escondidas e um homem a varrer as fôlhas sêcas. Coçava-se a hesitar, com o bico baixo. Sacudio as longas asas poeirentas e com uma voz de sono, começou:
—De alta estirpe, sim, de uma família de águias antiquíssima. Uma das minhas ancestrais, como agora se diz, fêz viagens épicas na Judeia, e num crepúculo de assombros, abrindo com as garras uma cordilheira{15} de nuvens, vio pregado na cruz o Hebreu Doce, e logo desceu ao morro numa gula tão doida, que ensanguentou no ar de sêda as asas bravas... Rasgou o peito magro do Homem-Deus, e ficou doida para sempre, doida, doida, na alucinação dêsse manjar patético, de martírio divino e desespêro. Porque ela ouviu a confidência do Heroi meigo... Mas não posso contar-lha, nem mais pio! É um segrêdo de família, é o meu segrêdo.
Amuei, retorqui num tom mimalho:
—Mas então, se não podia contar, p'ra que me falou nisso? Eu sou de uma curiosidade feminina. Já não saio daqui sem que mo diga.
—Mau! O senhor é uma criança. Que tolice! Dezenas e dezenas de avós meus, gerações e gerações de águias marinhas, levaram o segrêdo herdado e não traído, que nem ao sol, que é o deus das águias, revelaram. E quere agora o senhor com um papelzinho que lhe custou uns cobres (se o pagou) violar o murmúrio que tem séculos,{16} e é a última vibração daquele espírito que vestiu de nebulosas tôda a Vida... Sabe que mais? Estou já arrependida de falar.
—Não se zangue. Juro-lhe, juro-lhe que não digo nada a ninguêm. Se soubesse o que eu sei!... Segredos de família, dramas... dramas...
Esperei um instante ansiosamente. A águia inteiriçou-se, sem me olhar, bicando longes de memória, de saudade:
—Não sei que tenho hoje. Velhice, morte próxima talvez, pressentimentos... Quando essa avó longínqua cravou as garras no peito d'êsse Réu, e lhe bicou o coração e bebeu sangue, sentiu que enlouquecia, que era outra... Como se ferisse uma irmã, teve remorsos; fixou os olhos bêbedos de sol nos olhos d'Êle, refrescou-lhe com as asas a cabeça, empastada em suor, de um verde lívido...
A cruz que estremecia, ficou hirta. E foi então, foi então que Êle lho disse...
—Mas o quê? O quê? Diga depressa.
—O segrêdo, senhor, o meu segrêdo.{17}
—Mas qual é afinal? Quere torturar-me...
—Renegou-se a Si-mesmo. Retractou-se! Disse o remorso de não ter vivido, a tristeza infinita, o desespero e o mal sem remédio de ser virgem, de morrer no corpo morto de uma árvore, único corpo que sentiu, o de um cadáver... As estrêlas que nasciam no céu dúbio eram pr'ó Moço Hebreu pólen doirado, e a sua alma moribunda abria tôda como os hortos ideais da Galilea... O peito arqueou-lhe mais, contracturado... Queria largar a cruz p'ra poder dar-se, à terra dêsse cerro, a alguma forma, a um corpo de mulher, a alguêm, a alguêm...
A voz da multidão pela ravina era um marulho de ressaca mui confuso, e Êle sentiu entre pragas e risadas, entre os lamentos e os insultos que silvavam, sentia vozes de mulher... ouviu, ouviu-as... Só elas Êle ouviu, ouvia sempre... Queria falar ainda, quis falar-lhes e pedir-lhes perdão do que lhes disse, com parábolas mentirosas{18} de doçura e com olhos de lago sem desejo... Esvaía-se em sangue, ia azulando. Foi então que a minha avó num voo lento, lhe emmoldurou nas asas côncavas a Face... e que ela ouviu, senhor, e que ela ouviu...
Calou-se um instante imóvel no poleiro. Reparei. Era o guarda que passava.
—Já não sei onde ia. Estou com febre. Ah! No que ouviu a minha avó naquele instante... Quando eu penso nisso, quando penso... Imagine, se pode, ora imagine... Êle que era um Adivinho, Êle o Vidente, num dêsses instantes de génio que abrem séculos, previu, previu bem claramente, como se mentiria à Vida em nome d'Êle, a morte da Beleza e da Alegria, a Tristeza e a Doença em nome d'Êle, séculos e séculos de vida envenenados por o sangue de amor que Êle vertera, e iria embebedar os homens muito tempo, para sempre talvez, talvez p'ra sempre. Sentiu então que a querer salvá-los, os perdera... Certo, êsse instante de dor sempre ignorado{19} foi o maior de dor que alguêm viveu. E como Êle a diria, como...
—Em que língua falou? Foi em hebraico?
—Foi na língua das asas que Êle o disse. Não lha posso ensinar, já me não lembro. Quando me engaiolaram, esqueci-a. Mas que impressão lhe faz o meu segrêdo? Se os homens o soubessem, seria Êle na verdade o Redentor...
—Sim, sim. É bem justo o que me grasna. Shelley tê-lo-ia amado como irmão, e Nietzsche, o próprio Nietzsche...
—Bem sei. Êsse afirmou com pompa lá p'rò Norte, que Êle decerto se teria retractado se tão cedo o não crucificassem. Foi minha mãe que o disse a Zaratustra. Zaratustra ouviu mal, não disse tudo. A verdade é assim, como eu lha conto. Parece que os homens riram do filósofo, acharam tudo isso uma tolice...
—Acharam...
—E afinal êsse Hebreu crucificado, no instante supremo de tortura, quando p'ralêm{20} das nuvens o esqueciam, chamava só por Pan, o grande Pan! Se os homens soubessem isto e o entendessem, teria o grande Pan ressuscitado. Seriam brancas estas pobres asas.
—Brancas? Porquê?
—Durante séculos tivemos asas brancas, todas nós, águias da minha estirpe. Foi só depois que Pan morreu, que elas ficaram pretas, como luto. Quem se lembra de Pan por êstes tempos?...
—Os que sabem amar, os que ainda amam.
—Os que sabem amar!... Êsse Hebreu mesmo só conheceu o Amor no alto da cruz. Viveu como um fantasma transparente, com sonho nas artérias e nos olhos... Só escoado em sangue, no madeiro, viu nos olhos da minha avó sanguissedenta, dois espelhos do Amor, irmão do sangue...
Conhecem lá o amor aves de presa!
A águia crispou as garras no poleiro e casquinou um riso muito sêco, que soava{21} sem timbre, como tosse. Depois mudou de aspecto. Começou a tremer, tôda friorenta, as asas como andrajos mais pendidas, e nos olhos de febre, muito fitos, uma grande saudade que varava.
—O amor das águias... o amor das águias...
—Que tem? Está comovida. Conte-me o seu amor. Sou todos ouvidos.
—O meu amor... o meu amor... Já me não lembro. Já não posso dizer-lho. Vai tão longe!... Sou uma velha tonta, sem memória, um farrapo de penas para escárnio. Nem olho o sol em face há muito tempo. O meu amor... o meu amor... Já me não lembro. Coisas sem forma... nuvens... nostalgias...
Fêz uma pausa. Parecia mais adunca, mais mirrada.
—No convés de um navio abandonado, amei no mar do Norte, aos vagalhões, noites e noites, bêbeda de espuma... Havia a bordo um marinheiro morto. Lembro-me bem. Que noites! Que mar alto!...{22}
Tive um ninho e filhos pequeninos, num jardim vago, ao sol da meia-noite... Que silêncio! Sentia-o a passar por entre as garras...
Ensandeci de gôzo no deserto... Ouvi a Esfinge falar, ouvi a Esfinge, quando o sol lhe fendeu todo o granito, pôs ranhuras de dor nos olhos átonos, e escancarou a bôca em rictos duros... O que eu ouvi à pobre?
Soluçava!... Eis o inigma afinal, o grande enigma, à hora das miragens, do delírio, quando o sol enraivece, é só desejo, e o deserto urra no silêncio, e as areias escaldam e o ar zune... Amei... amei... amei na terra tôda... Desfraldei o desejo, cravei garras. Olhei o mar saciada e compreendi-o.
—Tem saudades do mar, aí na gaiola?
—Como um marinheiro preso... doidamente... O que eu viajei, o que eu viajei por sôbre a espuma!... Sei as lendas do mar como ninguêm. Contou-mas numa rocha um corvo antigo. Como sabe, os{23} corvos vivem séculos... Sabia-as todas êsse velho amigo... naufrágios e terrores... dramas da névoa... O mar! O mar! O que eu amei no mar! Mas o senhor não compreende, o senhor não sabe. Que sabem do Amor os homens todos?... Foi êsse Hebreu, sem querer, que os desgraçou. Fizeram ao Desejo o que fazem às águias quando podem... Está como eu o Desejo: engaiolaram-no! Fizeram do Amor isto... um dever! Um dever... um dever... um dever triste! Empalaram-no em leis, codificaram-no. Até fizeram isso... o casamento! E vivem em gaiolas, os seus lares! Raça de escravos! Se êsse Hebreu os visse...
—A senhora é uma águia, não percebe... Eu não posso explicar-lhe a Sociedade...
A águia olhou-me com um desprêso frio.
—O quê? Não sei? Sei mais do que Balzac. Eu li-o todo em casa de um burguês. Vivi lá dez anos de amarguras. Estive presa primeiro no quintal. Depois cortaram-me{24} as asas e soltaram-me. Soltaram-me mutilada pelas salas... Canalha! O que eu odeio os homens... As crianças, veja o senhor os anjos!... arrancavam-me as penas, espetavam-me o corpo com agulhas, e um dia um criado, na cozinha, tentou picar-me os olhos às risadas, a rir, a rir... como só riem homens. Sofri dez anos entre essa canalha. Era uma gente séria, muito séria. Vi a Família, a Tradição, vi tudo. Não queira argumentar, não diga nada. Sou uma águia, mas conheço os homens.
—De acôrdo. Eu não duvido. Não quero discutir, não argumento. Mas falamos do Amor, e apenas digo que há ainda quem ame sôbre a terra... gente da minha espécie... homens... homens... O amor, há-de a senhora concordar, não é um monopólio de asas nómades... Um bípede implume tambêm ama. É raro, eu sei, amor genuíno, é raro. Mas existe ainda, afirmo-lho eu, existe ainda...
—Que novidade! Pois não lhe disse já{25} que li Balzac? E viajei, e vivi mais do que pensa.
Parou um instante, o olhar scismático, sem foco:
—... Uma vez, num céu da Andaluzia, vi num jardim mourisco dois amantes. Senti o cio encrespar-me as asas largas e desci p'rós ver de perto na luz de ouro... Era na paz de uma cidade morta. Pousei num dos ciprestes do jardim. Tinha uma taça de alabastro esverdinhada, e uma água glauca que cheirava a febre. Era junto da taça que se amavam, sob a garra do sol, loucos de raiva. Fiquei quêda a aspirá-los muitas horas. Que corpos fortes! Eu achava-os lindos. Dormi na torre da igreja, numa gárgula, e de manhã voltei p'rós ver ainda. E assim dias e dias... Uma vez demorei-me, vim mais tarde, e encontrei-os imóveis e enlaçados. Tanto tempo os vi assim e tão imóveis, que pensei: estão talvez mais que adormecidos...Desci. Bati-lhes com as azas nos cabelos. Cravei as garras devagar nos seios dela... Estavam{26} mortos! Julguei então enlouquecer de gula. Devorei, devorei, até à noite... Lembro-me que sorvi os olhos dela. Estavam secos de amor. Eram cinzentos...
—Que horror! O que a senhora fêz!...
A águia ergueu as asas num espanto e tornou a fechá-las lentamente. Depois, com grande enfado, foi dizendo:
—Que absurdos macacos são os homens! São os animais mais torpes que eu conheço. Como tudo que vive, como todos, só pensam em gozar, gozar a vida... e com esta obsessão a estorcegá-los, prendem-se os braços, castram os desejos, adoentam-se, torcem-se... progridem. Querem morder, morder bem fundo... e beijam-se; sentem calor e andam ao sol vestidos; amordaçam o instinto, os imbecis!... Encerram o desejo nas alcovas, onde não entre sol, sombra de lua... Tem estatutos, cláusulas, parágrafo. Não fecundam a amar, são fabricados: são produtos de indústria os homens de hoje! Chamam a isto Civilisação. Não vivem por viver: tem{27} deveres a cumprir, obrigações... E tudo isto em códigos, sistemas, em religiões, teorias, em morais!... P'r'ós que tentem ser homens a valer, há prisões, há leis, ha tôda a Ordem! Existem já na terra há muitos séculos, e ainda não começaram a viver... ou, se viveram, foi na Pre-História ou na Pre-Lenda! Que macacos absurdos! Que macacos!
—Mas pare um instantinho, oiça, oiça...
—Não me mace, senhor, não me interrompa... O que mais os consome e os faz grotescos, e os enche de vaidade, é a Consciência, o Espelho, o Guia, o grande Guia, que os levou a isso que são hoje...
Atalhei, como quem aponta um cumplice:
—A culpa foi dêsse Hebreu de quem falámos. Talvez se o seu segrêdo se soubesse...
—Não foi só d'Êle, foi de muitos outros... Antes d'Êle e depois..., de muitos outros.
Tremeu-lhe o corpo todo. Arrepanhavam-se-lhe{28} as penas. Estava outra. Via-a transfigurar-se com espanto.
—O senhor é bem um homem. Não se pode nutrir sem illusão. Quando há pouco lhe disse o meu segrêdo, dei-lhe a entender que se êle se soubesse, havia na verdade um Redentor, os homens viveriam sôbre a terra. Tive pena de si que é um desgraçado. Sempre lho digo agora: era inútil! Conheço bem os homens por meu mal. O segrêdo do Hebreu que lhe contei, não é um caso único: é de sempre. Á hora de morrer—a uma águia, aos lençois ou ao travesseiro, todos os homens tem como êsse Hebreu, um segrêdo supremo a revelar. É apenas isto: a confissão de que morrem sem viver.
Continuou depois com o bico alto:
—Os homens são uma espécie condenada. São bastardos de planta e de fantasma.[1]Quem disse isto? Não sei... estou sem memória. Raça de escravos vis,{29} raça de escravos! E p'ra fugir à Vida o que inventaram! Como trabalham, suam e tressuam!... Dissecam tudo, árvores e pedras, fecham-se em quartos a estudar micróbios... E cada dia são mais desgraçados, mais fracos, mais inquietos e mais tristes!... Cada dia se embrulham mais em roupas, põem mais vidros nos olhos, tem mais mêdo... E cada dia fogem mais à vida! Que imbecis! Que imbecis! Que espécie torpe!
Sentia-me exaltado, nervosíssimo. A voz saíu-me estrangulada, rouca, em sobressaltos, brusca, sem fluência:
—A senhora diz coisas que me espantam, que por vezes são justas e terríveis, mas há outras tambêm que não entende, que não pode entender, sim, que não pode. É natural. A senhora é de outra espécie. Tem vivido com os homens mas é águia... e águia ficará até morrer.
Parei. Sentia-me vazio, em suores álgidos, quási incapaz de articular palavras. Ela então, com a plumagem toda crespa, transfigurada{30} agora, agora outra, já com metal na voz, interrogou-me:
—O quê? O quê? O que é que eu não entendo?
Sem recursos, nulo, desvairado, atirei-lhe êste lugar comum, como se estivesse a falar com um jornalista:
—Por exemplo: o Sentimento, a Beleza moral que há no Universo!
Vi-a saltar do poleiro, esvoaçar, bater asas de fúria nos arames, e recaír depois na mesma pose, a arquejar, asmática de raiva. Ficou assim sem fala ainda algum tempo. Apeteceu-me fugir. Tive vergonha. A voz dela por fim veio em arestas, ferindo o meu orgulho já ulcerado:
—A Beleza moral!... O Sentimento! Que fizeram com isso?... Que fizeram? A Harmonia social, êsse concerto que é de rasgar os olhos e os ouvidos. A fome, a revolta, o desespêro... A raiva de saber, de analisar, de fechar em teorias toda a Vida... A Dúvida, a loucura metafísica, e o culto da dor, êsse onanismo!... A impotência em{31} tudo, a impotência... E por paródia à luta de viver, uma luta sem garras, enluvada, um ódio triste e covarde, corrosivo; a intriga e a cilada pela fôrça; a caridade que é o egoísmo doente, e o culto dos ídolos, os cultos, a escravidão aos deuses e às ideias... A Harmonia social... essa gaiola onde vivem a uivar os homens todos!
Dava gritos estrídulos, sarcásticos: as penas erriçavam-se de fúria.
—Oh! O ódio dos homens, que grotesco! E há classes opressoras e oprimidas, com fórmulas, com cláusulas, com leis!
Não é o ódio celular, contracturante; não é o ódio animal todo de instinto; não é o ódio de todos quantos vivem! O ódio dos homens foi canalizado, por seitas, por classes, por partidos, em dogmas, preconceitos, covardias. Nos outros animais o ódio é orgânico! Todo o combate é sempre pela Vida. O dos homens é anémico, missérrimo, e defende o dever, o preconceito, as taras de domínio e servidão, e até mesmo na revolta é miserável, pautando a Vida, sistematizando.{32} É o ódio da paródia de viver, do fantasma de Vida que êles vivem!...
Parou. Eu estava como tonto, desvairado. Tinha decerto endoidecido essa águia velha, delirava, dizia só loucuras; mas eu não achei nada para opor-lhe, p'rà aniquilar nêsse silêncio de fadiga. De súbito lembrei-me: a Arte, a Arte, tôda a minha quimera de mãos postas!
Sentindo-me desta vez irredutível, gritei-lhe p'rà gaiola:
—E a Arte? A Arte? Consolação suprema de viver...
Teve farpões de escárneo ao responder-me:
—A Arte!... A Arte é a expressão da Vida. São os homens que o dizem, não é assim? Ora se êles não vivem, se não vivem, se parodiam a Vida a cada instante, se fogem mais e mais da grande Vida, a Arte é uma paródia de paródia, um espectro de espectro... miserável! Querem com tintas imitar o céu, e transcrevê-lo em lonas, em madeiras!... O céu bebe-se aos haustos,{33} com os olhos; olha-se por olhar, sem intenção; recebe-se nas pupilas extasiadas, que se alargam mais com sêde dêle... É o que faz um sapo a olhar os astros! É o que os homens não compreendem nunca! Toda a terra é feliz se o sol a doura; tudo germina, as pedras e as sementes... Só os homens que se cobrem p'ra evitá-lo; que nas cidades gastam horas a vestir-se; que tem por céu só um paninho côncavo a que chamam guarda-chuva ou guarda-sol; que o filtram nas igrejas por vitrais, que usam lunetas, que o receiam sempre; que tem medo da morte às suas garras, deslumbramento e orgulho de águias soltas; só os homens, absurdíssimos macacos, querem copiá-lo em lonas, em madeiras, com tintas, com carvões, com paus de côr!...
Que macacos absurdos, que macacos!
Bem quis interrompê-la, não podia. Vibrava de loucura negadora, hierática, estranha, convulsiva.
—E nem poupam o mar nem as searas, as penedias trágicas, as rosas! Metem o{34} mar nuns centímetros de lona, e com medo que as marés vão sufocá-los (a águia ria, ria como louca) mandam emoldurá-lo, encaixilhá-lo!...
Prendem-no assim nas salas, nas alcovas. Oh! A Arte dos homens! Coisa imensa! A paródia da Vida... paralítica! Mas vá alguêm dizer-lho! Vão dizer-lho! Ainda os antigos cegavam as estátuas... Êstes abrem-lhes olhos, bem abertos, a reflectir... o quê? A vida dêles, a paródia de vida que êles vivem e que andam a imitar ainda por cima!...
A noite começava a entrar nas coisas. Um grito de pavão varou o parque, assustou os jardins que adormeciam, e um instante no ar, teve saudades... Uma angústia sem nome andava esparsa, caía das árvores grisalhas, que pareciam à escuta, com terror. Em frente o chorão vergava mais, quási rasava a terra com doçura, em curvas de um encanto nazareno. Uma sereia aguda de vapor, já a sair a barra certamente, mugiu como um agouro de naufrágio. A treva ia afogar tôda a gaiola. Não via bem{35} a águia, mal a via. Só os olhos e as asas muito vagas... Era um fantasma de águia àquela hora, mas crescia em mim desmesurada, como um ser de fábula e tragédia, oráculo sarcástico e sinistro, lendo o horóscopo num poleiro reles, como se rasgasse a esperança com as garras. Afinal era eu a sua presa, e ouvia-a passivo a torturar-me.
—A Arte dos homens! Que mentira triste! Em vez de serem belos como estátuas, derrancam mais os corpos para erguê-las! Até modelam sonhos e quimeras!...
Nunca olharam as nuvens, nunca as viram, esses mármores ao vento, fluctuando... E o vento! O vento! Sabem lá ouvi-lo! Tanto não sabem que quando êle prega, durante o inverno em que êle é todo génio, metem-se em casas grandes, bem fechadas, p'ra ouvir sons, sons, imensos sons... Chamam a isso Música. Conheço-a. Desde que vivo com os homens, perseguiu-me. Nem aqui na gaiola eu lhe escapei. Toca aos domingos horas, no coreto. Enche-me mais de raiva e de miséria. A música das{36} águias como é outra!... Quem a ouviu como eu quando era águia, antes de ser esta carcassa reles! Nas montanhas, no mar, na névoa móvel!... Sobretudo no mar, no grande mar... O que eu viajei nos temporais a ouvi-la! Ás vezes partíamos no vento em turbilhões, asas e asas, nómades, pairantes... Regougos de ondas, nuvens a rasgar-se, e os nossos gritos, bêbedas de espuma!... E mil vozes de formas nunca ouvidas, a voz de tudo, tudo, a voz de Pan! E o silêncio, o silêncio... Certos instantes únicos, supremos, em que êle se ouve, o temporal hesita, e um pânico arrepanha as asas todas... Como é agudo, agudo, êsse silêncio!... Nas meias-noites de estio... o que eu gostava de despertar no éter melodias, ferindo-lhe o teclado luminoso, numa alma de voo, sereníssima... Punha medo com o rumor das minhas asas às nuvens que dormiam extasiadas, e auscultava a noite pelo céu, até ouvir a manhã vibrando tôda, quando o ar é uma orquestra miriadaria e os homens dormem nas alcovas mornas...{37}
Estendeu por minutos seculares o seu monólogo patético de velha, essa arenga evocativa de fantasma, lapidando o meu ser com ironias, em que memórias épicas passavam, como o granizo aos pobres em dezembro. Todo o meu senso crítico se foi na rajada feroz dos seus desprezos: era uma fúria aguda de vingança, de esfrangalhar essa carcassa oráculo, varar-lhe os olhos com a ponteira da bengala, acabá-la de vez, estrangulá-la. Retorqui-lhe então com a voz dura, pondo raivas de morte nas palavras:
—Sim, sim... Diga ainda mais... o que quiser. Cante à sua vontade, minha amiga! Insulte os homens, ria, desgraçada. Nem me dou ao trabalho de a esmagar. Só lhe pergunto isto, apenas isto: quem a tem aí bem presa na gaiola? A si e a êsse mocho seu vizinho? Ao leopardo, ao lobo, a essas feras? Quem lhe dá por esmola bifes podres, e faz de si o riso das crianças, e a há-de empalhar depois de morta?... Você é uma águia tonta, dementada, que a{38} escravidão ensandeceu de vez. Melhor, melhor! Assim faz-nos rir mais. Grasne p'raí; rebente a divertir-nos!...
Parei pr'a tomar fôlego, cansado; mas o relevo imóvel dessa ave, a sua forma heráldica de bronze, alheavam-na tanto desta cólera, do desespero besta em que eu tremia, que me pareceu inútil continuar e me senti um títere grotesco. Era o mais infernal dos casuístas, essa águia impossível de ferir, feita de sombra, emoldurada em sombra, presa nessa gaiola e mais distante que se esgarçasse as asas nas estrelas. Emquanto assim pensava, ei-la que fala:
—Bem certo, sim, bem certo o que me diz! O Homem alastra pela terra como um cancro, pervertendo a vida, corroendo. Reduziu-me a mim, asas e garras, a um animal grotesco de capoeira, meio tonto de dor e de miséria. E as feras!... Exibem-nas nas feiras e nos circos, em gaiolas de ferro, à luz eléctrica, ante o pasmo alvar das multidões, rindo da força mutilada e doente. Cortam as jubas aos leões, abrem-lhes risca,{39} dão-lhes chicote e bifes, civilizam-nos! E quando os tem nas jaulas, sonolentos, sem força e sem instinto, entorpecidos, com as pupilas de oiro marasmadas, com as garras inúteis já sem preza, acham-se heróicos porque os chicoteiam, mesmo quando êles tremem de sezões, mesmo quando êles morrem de saudade!... Não há amor de asas num rochedo à névoa, que o terror dos homens não errice!... Antes disto, porém, já os adoraram. No Egipto, em tardes de colheita, o voo das íbis riscava no ar do Nilo curvas em que êles viam profecias... E outros como Isis, como Anúbis, sucumbiram no tédio de ser deuses, e depois das pompas rituais, de oferendas, de orações, de sacrifícios, são os servos misérrimos do homem, domesticados já, civilizados!
Mutilam as árvores, deformam-nas; exilam certas plantas nas estufas, com saudades do húmus e do sol, e trazem na lapela rosas mártires, que abriam de desejo como noivas, à espera do pólen bem-amado! Não entendem o sangue nem a seiva: vão pervertendo{40} tudo, corroendo! Até que um dia, não mais florestas, catedrais a Pan! A terra será calva como um sábio, e cordilheiras, montes e ravinas serão assassinadas, cavacadas, p'ra que os homens mobilem os palácios, p'ra que tenham poleiros nas gaiolas... Os areais, as deserteiras ruivas onde o mar espadana e se extasia, terão motores, instalações fabris p'ra utilizar a raiva das marés, em quê, deus-sol?... a enriquecer indústrias... Todo o azul será viuvo de asas, e os filhos das águias e das feras nascerão em gaiolas e em jaulas! Ah! Mas tambêm nada haverá mais triste do que os filhos dos homens, as crianças... A inocência, essa graça animal, de flôr e de ave, que êles chamam divina... os imbecis! não mais existirá nos filhos dêles, reflectindo nos olhos já doentes, a farça de viver, como nos velhos... Será assim um dia, será assim. Onde irão depois refugiar-se? Nos braços do amor, do amor dêles, em que um olhar de mulher lembra um naufrágio, e faz que, cada trança, por mais loira, venha a{41} ser sempre a fôrca de um destino! A terra será a catedral do sofrimento, fim da farça sinistra que êles vivem, a inventar anestésicos e dores!
Certo, o farrapo de penas que hoje sou, é bem obra dos homens. Certo, certo... Mas aqui mesmo, num poleiro reles, garras em cotos, quási paralítica, consola-me pensar que nenhum dêles será nunca o que eu fui, asas e garras, vivendo pr'ó Desejo pelo instinto, e em nomaderias de vertigem, amando tudo, tudo, a terra tôda, na luxúria suprema e inconsciente, de viver, de viver só por viver!
Fêz uma pausa. Tive a visão daquela vida fulgurante, evocada em gritos de delírio, por essa pitonisa de asas longas que cortava com o bico o meu destino.
Foi então que eu ouvi estas palavras, que eram mais que um soluço, que um crocito, uma espécie de guincho em que houve lágrimas.
—Iriam cair nas mãos dos homens os meus filhos!...{42}
Lambeu-me um calefrio de vertigem.
Era demais, meu Deus, era de mais! Não era já o meu orgulho em chaga, enovelado como um trapo nessas garras: o que eu agora queria, o que era urgente, era mostrar a essa águia, a essa mãe, que o seu dolorosíssimo terror era uma apreensão de louca, uma injustiça: o que eu agora queria de alma tôda, era mostrar-lhe o coração dos homens p'ra que ela o visse bem e tão patente, como se lhe pendesse a sangrar do bico curvo. Pr'à convencer daria tudo, tudo. Procurava um meio, sem achar. Sentia a inanidade das palavras. Com uma idea súbita falei-lhe:
—Vou abrir-lhe a gaiola. Vai ser livre.
Era decerto o pasmo que a gelava, porque não saiu da treva uma palavra. Eu continuei numa emoção crescente em que vibrava a ânsia de a soltar:
—Vai ser livre, livre como outrora. Acorde as suas asas esquecidas. Diga adeus a essa gaiola imunda. Olhe mesmo daí: que encanto de hora! A noite arqueia ao pêso{43} das estrelas... Uma palavra sua e abro-lhe a porta. Não duvide. Sou forte. É num instante...
O seu recorte altivo de águia em bronze amezendou: fôsse fadiga ou tédio. E num becejo vago, interrogou-me:
—Vai abrir-me a gaiola... mas p'ra quê?...
—P'ra quê?! P'ra que antes de morrer domine o espaço... p'ra sentir a vertigem do infinito...
—Eu?!... repetiu numa fleugma desdenhosa. Eu?!... Saír dêste poleiro, da gaiola? Não sou doida varrida por emquanto. Saír da minha casa, do conforto pr'á incerteza da noite, p'rò mistério?... Sou uma águia mas vivi entre homens. Já estou civilizada, meu senhor... E se o vento me arranca as asas velhas? E se chover, e se chover? Já pensou nisso? Nem com as garras enluvadas eu me atrevo... Nem que me cubra as asas de impermeáveis...
Nem com um water-proof, nem assim...
A águia ria, ria doidamente. Crispei as{44} mãos nos arames, exasperado, e com uma voz enrouquecida fui dizendo, num tom de confissão, quási febril:
—Imagina talvez que a não entendo, que sou um homem como os outros, imagina...
É natural... é natural. Não me conhece... Mas eu quero dizer-lhe: oiça! oiça!
Há em mim um não sei quê de águia marinha. A sua sorte comove-me, acredite. Quero tambêm dizer-lhe o meu segredo, quero desabafar, contar-lhe tudo...
Bateu as asas com um ruído sêco, e num timbre fatídico de corvo, com uma voz de sibila, crocitante, atirou-me estas palavras derradeiras:
É cedo, é cedo ainda. Imite os outros. Diga isso ao morrer ao travesseiro.
Esse sarcasmo último transiu-me; e como quem se agarra ainda á esperança, pus-me a gritar p'rà gaiola, tontamente:
—É o convívio dos homens que nos perde. O seu destino é irmão do meu, escute... Queria ser forte e belo, queria...
Falei, falei, falei... Não sei que disse.{45}
Sandices e quimeras e desejos, larvas de ideas, raivas, desesperos. Parei por fim.
Já nem lhe via os olhos. Decerto cerrara as pálpebras com tédio. Só o vulto de sombra sôbre a sombra se alongara mais, estava maior. Ouvi então uma sineta banalíssima, a pôr-me fora sêcamente: era já tarde. Olhei ainda a gaiola, despedi-me, atirei-lhe p'ra lá um «adeus» surdo. Ao passar na jaula do leopardo, senti um cheiro mau a carne podre. Vi-lhe o vulto enigmático de esfinge, a cabeça nas patas dianteiras, os olhos de oiro fulvo, fuzilando. Se aquele me falasse, o que diria!... Atravessei o parque silencioso, como numa balada, com terror. Vi nas acácias os pavões adormecidos, olhei o céu filtrado por folhagens onde um langor de outono se esfolhava, e à saída já, p'ra me calmar, molhei as mãos febris numa das taças e passei-as nas fontes consolado.
Achei-me emfim na rua, longe dela.
Um rapaz namorava mesmo em frente, a patrulha descia compassada, disse-me adeus{46} um côco conhecido: dobrava a esquina um eléctrico apinhado. Tinha ainda no ouvido a voz da águia, quando saiu de uma janela aberta uma ária roufenha de fonógrafo.
Comuniquei feliz com a vida reles. Depois disto, é evidente, não posso mais falar-lhe. Ainda bem! Levava-me ao suicídio essa águia velha.

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